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Paulo Afonso,12/05/2025

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As Caminhadas de Dona Liô, minha mãe!

Gilmar Teixeira
As Caminhadas de Dona Liô, minha mãe! Arquivo Gilmar Teixiera

Era madrugada ainda e o galo mal tinha arriscado o primeiro canto quando Dona Liô já pisava o chão frio do sertão de Olhos d’Água de Souza. Os pés firmes no barro, a alma serena, o corpo acostumado a não ter descanso. O relógio da vida marcava 4 da manhã, mas para ela o tempo nunca foi de relógio — era de sol, de poeira, de luta.


Cinco quilômetros a pé até a roça, num caminho que parecia feito só de desafio: mosquito zunindo no ouvido, cobra cruzando a estrada, o escuro cercando como se dissesse “volta”. Mas ela não voltava. Nunca voltava. Ia. Sempre ia. Porque desde menina, disseram-lhe que a vida era pra ser vivida com as mãos na terra e o coração no batente.


E como trabalhava! Do nascer ao pôr do sol, suas mãos ajudavam o milho a crescer, o feijão a brotar e a vida a seguir. Mas o trabalho não dormia. Ao voltar, ainda era ela quem buscava água nas cacimbas, cuidava do fogo, do alimento, da vida dentro de casa.


Quando casou com Neco Miguel, achou que ali, talvez, o destino fosse se abrandar. “Agora vou descansar”, pensou ela. Mas foi aí que a lida apertou ainda mais. Além da roça do marido, veio a obrigação de cozinhar para os cunhados, caminhar mais seis quilômetros com a panela na cabeça, o filho no colo e outro no ventre. Era uma mulher só — mas parecia muitas.


E ainda assim, Dona Liô não reclama. Conta hoje as histórias com brilho nos olhos e um sorriso que mistura coragem e orgulho. Quase cem anos depois, ela olha pra trás como quem folheia um álbum de glórias. “Se teve mulher que trabalhou mais que eu, devia estar lá do outro lado do mundo, na China”, ela diz, com aquele jeito sertanejo de transformar sofrimento em sabedoria.


Quando lhe perguntam o segredo da longevidade, ela não vacila: “Trabalho. Quem trabalha igual a eu, chega também nos cem anos. Viu?”


E a gente vê. Vê em Dona Liô a força de um povo, a beleza de uma mulher que caminhou muito mais do que os pés podiam medir. Caminhou na vida — e ainda caminha, com histórias que agora florescem em nós, como feijão e milho brotando da terra dura do sertão.


O tempo passou ligeiro como vento de agosto. As veredas por onde Dona Liô caminhava viraram lembrança, mas a poeira daquelas trilhas ainda vive no brilho dos seus olhos. Hoje, quase centenária, ela conta suas histórias como quem borda um pano de chita com agulha firme e linhas de memória.


“Naquele tempo não se falava em cansaço. Era fazer ou fazer. A gente nem pensava. Só ia.” E ela foi. Com filho de um lado, lata d’água do outro, a cabeça sustentando não só a panela, mas o peso de uma vida inteira.


E mesmo com a lida apertando, Dona Liô sempre arrumava um jeito de cuidar da família com ternura. O almoço era no capricho, a farinha bem mexida, o feijão temperado com alho socado no pilão e afeto no fundo da panela. As roupas eram lavadas na beira do rio, esfregadas com sabão feito em casa, e estendidas no varal da esperança.


Numa época em que a mulher do sertão quase não tinha voz, Dona Liô falava com as mãos. E como falavam! Plantavam, colhiam, curavam feridas, ninavam os filhos, acalmavam os medos e puxavam a rédea da vida. Tudo ao mesmo tempo. Tudo com coragem.


Os filhos cresceram vendo aquela mulher de fibra moldar o mundo ao redor. E hoje, já com netos e bisnetos, ela olha para cada um com a certeza de que valeu a pena. “Tudo que fiz foi pra ver vocês comendo bem, estudando, com saúde”, diz, entre um gole de café e outro punhado de lembrança.


Nas noites de lua cheia, quando o silêncio do sertão se deita devagar, Dona Liô se senta na cadeira de balanço da varanda, olha pro céu e conversa com o tempo. Fala com Neco Miguel, seu companheiro de tantas caminhadas. A saudade aperta, mas ela não se rende. Sabe que a vida não é só o que passou — é também o que ficou.


E o que ficou em Dona Liô é muito mais que uma história. É um exemplo. Uma raiz profunda fincada no chão do sertão, que alimenta gerações com a seiva da resistência, da fé e do amor. Cada ruga em seu rosto é um capítulo, cada fio branco é um verso, cada lembrança, uma flor que teima em nascer mesmo no solo mais seco.


“Se eu tivesse que viver tudo de novo, vivia. Do mesmo jeito”, diz ela. E a gente acredita. Porque quem foi capaz de transformar tanta dureza em ternura, tanto esforço em legado, sabe muito mais da vida do que qualquer livro pode ensinar.


Dona Liô não é só a matriarca da família. É uma poesia viva do sertão. E enquanto ela viver — e mesmo depois — suas caminhadas continuarão ecoando nas estradas de Olhos d’Água de Souza, onde a força tem nome de mulher.


* Gilmar Teixeira




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